quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

deles cubro o meu leito

 

de mil fronhas de memórias

e sete pedaços d’alma

costurei uma manta de retalhos

que intimamente formam o tempo;

 

aquelas enchi-as com o que já vivi

envolvidas como almofadas

onde repousam os feitos do passado

e servem de apoio e saber;

 

os outros, bem maiores e centrais

enrobustecidos pelas dores e alegrias

formam a essência de toda a coberta

não se vêm, mas sentem-se e dão vida

 

- ao tempo que foi e ao que há de vir.

 

(Adriano Costa / Janeiro, 2022)




sexta-feira, 15 de julho de 2022

Acto final

Quando chegar o meu último momento,
seja lá como derem pela minha falta,
não serei mais que um corpo inerte, mas liberto,
que já não respira, nem seu coração bate mais,
depois de tanto bater e se atormentar, 
acelerado e desritmado tantas vezes,
mas que mostrava vida e sabia sentir,
ao dar nome às emoções e sentimentos,
das de contentamento e felicidade,
às de dor, incompreensão e sofrimento,
e do muito que deixei por corrigir.

Se alguns se juntarem à minha volta,
que saibam que já nele não habito,
voei, abrindo e dobrando as asas,
guiado pelo canto das andorinhas que me levam,
sorrindo e indo de novo ao encontro
de quem tão bem me tratou e considerou;
que antes também cuidei e tentei servir,
ou algum conforto e alento procurei dar,
com aquele amor e dedicação em saber
que aliviando o peso das suas cruzes,
esquecia as dores da minha,
foram o meu propósito de vida nesse tempo que durou,
talvez numa redenção dos meus pecados,
mesmo que tal pensamento não fizesse parte da acção,
alguém que não eu, o saberá.

E nesse momento final, seja lá quantos estiverem,
não quero lágrimas, nem comiseração,
nem que sussurrem se era bom ou nem por isso,
não quero que digam que era porreiro,
já não mais me poderão dar pancadinhas nas costas,
nem o abraço que ficou por dar,
não quero saudades nem que sintam falta,
que já não há remédio nesse momento,
muito menos que pensem nos "ses",
do que foi ou poderia ter sido,
quando saírem já seguiram em frente,
será o momento do ponto final, apenas,
sem vírgulas, exclamação ou reticências.

Quero, se se lembrarem, de risos e alegria,
de música, muita música a tocar,
desde a clássica ao "rock & roll",
não esqueçam dos blues por favor,
quero que os acordes do "greensleeves" soem,
a que cantarolava aos meus rebentos,
embalando-os e adormecendo ao colo, feliz,
e assim me embale a alma na viagem,
como quando os levava às cavalitas aos ombros,
e tantas outras cumplicidades.

Já sei que levarão flores, não faz mal,
também sempre gostei de as levar,
se forem uns lírios da paz, seria bom,
e quero que as minhas cinzas,
juntas com a terra da aldeia que me viu nascer,
sejam espalhadas na foz do rio,
que sejam levadas pelas correntes aos oceanos,
correndo o mundo e os lugares que ficaram por conhecer.

(15-07-2022)




segunda-feira, 27 de junho de 2022

Angústia

Sem propósito nem hora marcada, eis que chega inesperadamente.

Invariavelmente sem aviso prévio e sem dizer como, instala-se.

Não ocupa espaço, preenchido que fica pelo vazio,

ensombrando a alma e apertando num nó sufocante, 

revolvendo o estômago, e o cérebro, pesado ou vago, indistinto.


Amiudadamente sem razão aparente e vais procurá-la dentro de ti,

por entre a amálgama disforme de emoções e sentimentos,

que se vão alastrando e misturando numa receita incongruente.

E esconde-se, disfarça-se em sinais físicos,

Irreais, pois que apenas são o reflexo da sua intrusão.


Sente-se bem viva quando surge, o coração bate e rebate,

numa cadência desenfreada, arrítmica, que parece chegar à boca, 

mas não se exala, fica retida numa anátema corrosiva.

Procuram-se remédios e mezinhas, que não a saram, 

regressa, feita um viajante que vai e volta. 


E procura-se algures, uma voz que nos oiça, por um instante que seja,

como um pedido de socorro, humilde e momentâneo.

Uma palavra amiga apenas, que num ápice dilua esse turbilhão presente. 

Por vezes, apenas escutar a nossa dor é quanto basta,

desvanece-se como num passe de mágica, ou milagre talvez. 


Para que não surja regular e invariavelmente,

acarinhemos as vozes com que podemos contar.

Procurando dar à voz do nosso próprio interior entendimento, 

e às que nos rodeiam e sabes que estão lá para te escutar, firmes.

Pois enquanto forem presença, a angústia estará ausente.


(Adriano Costa / 27-06-2022)




sexta-feira, 8 de outubro de 2021

perguntei ao mar

perguntei ao mar por alvíssaras 

do reino encantado onde um dia

vislumbrei por entre a neblina

uma sereia e seus encantos

em tudo iguais no seu ser

às histórias de encantar e sonhar


que só uma inocente criança entende

ou um homem feito na sua inocência

e em cujo peito ainda acredita

que a magia dos gestos e sentires

dos olhares transparentes, simples

ainda existem neste universo


que a beleza e candura são possíveis 

e que o tempo traçado dia a dia

torne recto este mundo controverso

e que das linhas e traços tecidos

com ardor, paciência e vontade

se desbrave um rumo certo


e é esse o caminho do homem feito 

acreditando na sua esperança 

dando e fazendo aquilo que é

em todo o seu ser e sentir

construindo pedra a pedra

aquilo que partindo de si, se dá 


sem fadiga, sorrindo serenamente

pois que são sorrisos o que procura

nos afagos que docemente acaricía

apenas por ser mel e bem-querer 

o que do seu peito brota 

levando o calor, colo e ternura

a essa sereia bela e encantada 

que tanto encanta no seu canto

na sua voz, rosto e ah...no seu sorriso


e o mar não responde mas 

entoa àquele homem feito,

tal como à criança que na praia 

corre e salta e pula e faz castelos,

canções de embalar e acalmar

que as ondas claras transmitem

ao abraçarem a areia fina


e a criança alegre entende

e molda o seu castelo e ameias, 

e o homem feito entende

que o sonho se constrói com as mãos


(Adriano Costa, 7 de Outubro)



quarta-feira, 29 de setembro de 2021

laços


laços

feitos de meadas

e madeixas coloridas

são extensões de abraços

sorrisos e olhares

que se unem

são vida e cor

que se desdobram

(suave e delicadamente)

e abrem-se ao horizonte

caminhando e cantando

no caminho que se estende

num mesmo olhar

traçado e cuidado

brindando

à liberdade de se ser

simplesmente

(Adriano Costa - 28/09/2021)



quarta-feira, 4 de agosto de 2021

um farol entre o nevoeiro

por entre o nevoeiro cerrado

o marinheiro procurava o seu rumo

sulcando tenazmente as ondas,

antes tempestuosas,

perscrutando serenamente aquela luz ténue

dum farol lá longe no meio do nada


que ele sabia lhe daria o norte

o sul, o este e oeste, qualquer rosa

que seja dos ventos, ou dos espinhos

divagando se estaria perdido no meio do nada

ou seria um fogo profundo que lhe toldavam

os sentidos, sem parar de remar


num barco sem ninguém, sem timoneiro

apenas o seu instinto de homem de terra

agarrando-se à única tábua, da tenacidade

sem leme ou bússola nem sextante

apenas as estrelas por cima do nevoeiro

o guiavam fugazmente à noite num sentido


o caminho rumo ao horizonte, qual utopia

sonho ou pesadelo, seria dia ou noite, seria mar

ou deserto pois que seus pés ardiam em brasa

ou estaria apenas deambulando

pelas ruas, estradas, casas ou serra

esperando apenas pela bonança

ou por uma manhã fresca de brisa suave;


e parou

parou, o homem feito marinheiro

para falar consigo mesmo, olhando o céu

agora limpo e claro

erguendo a cabeça numa prece silenciosa

feita de contemplação, esvaziando a mente


de pensamentos, interrogações ou pesos

que carregava nos seus ombros e lá dentro

bem fundo no seu peito;

e sorriu

sorriu para si mesmo e para as mãos

que tanto tinham remado em contracorrente


e sentiu paz

aquela paz que só encontramos dentro de nós

da luz que vem do farol chamado consciência

do amor próprio que só ela lhe dá

sereno e transparente na sua alma 

reencontrando-se por fim no que sempre foi.


(Adriano Costa - 04/08/2021)



 

(Ariano Costa, 04/08/2021)

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

águas que correm

entre senzalas onde as mulheres
amassavam a farinha no pilão enorme
imensos ribeiros mansos corriam
e se cruzavam dando vida e fartura
saciando a sede e fonte de regadio
dos que abençoados dele desfrutavam 

nesses ribeiros onde a água abundava
o homem moinhos de água construiu
moendo com as suas pás a farinha 
enchendo-a em sacos fosse dia ou noite
sempre que o vento as rodas rodasse
que feito pão alimentasse a cada dia

naquele moinho nasci e aprendi a andar
não recordo pela minha pequenês 
a labuta e azáfama de meu pai 
que a qualquer hora da noite na água
mergulhava o seu corpo ainda jovem
nas horas em que o vento aprouvesse

nessa aldeia rodeada de senzalas
fui correndo, pulando e criando
a verdadeira noção de liberdade
pelos infinitos horizontes do planalto
e o valor do pão que no forno e lenha
minha mãe com destreza cozia

lembro depois pequenino e deslumbrado
luzes que despontavam na madrugada
enquanto o barco a marginal corria
para atracar no cais da grande cidade
onde um rio enorme docemente corria
era um mundo novo diferente do mato 

para trás lá longe ficaram as memórias
agora era tempo de crescer e viver
nessa adorada cidade que tão belo rio
a rodeava com suas fragatas e faluas
ainda recordo as varinas e seus pregões 
o funileiro a mulher das bolas de berlim

as bolas de trapos os berlindes e caricas
os soldadinhos de chumbo e índios
os quintais os jardins e as ruas livres
onde corria jogava e solas rompia
joelhos esfolados cabeça partida
tudo era alegria e contentamento

aprendi as letras as cores e os sonidos
aprendi também o valor enorme
das reprimendas maternais diárias
feitas de chinela ou da escova do fato
mais não eram que o amor firme
balançando entre o calor do seu colo

aqui na grande cidade amores vivi
os platónicos e sonhos da mocidade 
os que deram frutos hoje feitos homens
os que ficaram algures e podiam ter sido
os que partiram ficando a aprendizagem
e os desamores que por encanto se iam

como o amor desta grande cidade
com cantos e recantos que encantam
de toda uma vida e nela tantas vidas 
algumas que já não voltam mais 
o moleiro que do moinho dava farinha 
e a mulher que dela fazia o pão

uma página da vida que vira e volta
entre este rio onde corre a seiva
e os cantos já sem tantos encantos
invadidos por pueris interesses
onde pedras e casquilhos me feriram
e outro rio que corre ao mesmo oceano

um rio azul onde pululam golfinhos
onde as gentes desconhecidas 
dão os bons dias a estranhos como eu
leve, solta e simples nos seus jardins
levo as pedras preciosas que guardei
como riqueza e tesouro do meu íntimo

entre os ribeiros e ribeiras da infância
navegando rio acima e abaixo
tomei os meus rumos e caminhos
nalguns mergulhei em remoinhos fundos
noutros a bonança de bem fazer
quatro paredes vazias que me prendiam

novo rumo novos caminhos outro rio
pedras preciosas que me enchem 
dando objetivo e sonho de viver
entre um lado e outro percorrendo
a vontade desse caminhar sorrindo
longe do entulho e perto do que quero